JOSÉ RÉGIO

 

UM VILACONDENSE MUITO ILUSTRE

 

 

Muito já se escreveu (e bem) sobre o José Régio, homem de letras. Felizmente continua a escrever-se, mas será tarefa muito árdua dissertar sobre o que falta ainda dizer. Certamente é assunto para especialistas e este não é o local mais apropriado para o fazer. Como vilacondense, propomo-nos, por isso, mostrar um pouco do vilacondense José Régio, um vilacondense muito ilustre.

 

José Maria dos Reis Pereira nasceu em Vila do Conde, pelas nove horas da tarde, de 17 de setembro de 1901 no mesmo quarto da mesma casa paterna da Rua de Santo Amaro, onde já havia nascido uma sua irmã, Ana Antonina, e onde haveriam de nascer depois os demais irmãos, Júlio, Antonino, Ana da Conceição, Apolinário e João. Seus pais foram José Maria Pereira Sobrinho (13.04.1876 / 24.04.1957) e Maria da Conceição Reis (06.06.1876 / 28.04.1946). Seus ascendentes paternos foram mestres de pescaria, carpinteiros, alquiladores, lojistas de ourivesaria e os maternos foram pescadores, embarcadiços, capitães de navios de longo curso. Tanto quanto se conseguiu pesquisar, os seus ascendentes paternos são vilacondenses desde o século XVII e os maternos desde o século XVIII, pelo menos.

 

Foi batizado no dia 21 de setembro de 1901 na Igreja Matriz de Vila do Conde, na mesma pia em que, cinqüenta e cinco anos antes, fora também batizado um outro José Maria - o Eça de Queiroz.

Das circunstâncias do seu nascimento deu-nos depois Régio na "Confissão dum Homem Religioso" uma bela página vilacondense:

 

"Estando de esperanças, e sabendo que não podia vir demasiado longe, embora não esperado para já, o dia "do alívio", (minha mãe) fora de seu vagar encomendar-se à Senhora do Desterro. Regressou bem disposta; mas talvez o passeio um pouco longo a tivesse revolvido, - o caso é que eu nasci nessa noite. Nasci sem dificuldade, só um pouco antes do tempo, sob a proteção da Senhora do Desterro. (...) Sou, pois, o que o nosso povo chama um "menino sem tempo". Nasci "antes" do tempo. A mim próprio me pergunto hoje se não teria antes nascido "depois". A verdade é que muitas vezes ando de candeias às avessas com o tempo em que vivo, sem saber se lhe estou atrasado ou adiantado - e entre mim e o Tempo há entendimentos e lutas que não percebo muito bem eu próprio".

 

Neste belo, único e pungente livro ("Confissão") José Régio deu-nos também outra lindíssima página sobre algumas capelas da sua terra natal :

 

"Já perto da foz do Ave, que lá ia correndo para o mar sob a guarda de quatro Senhoras - Senhora Sant'Ana lá em cima no seu outeiro entre pinhais; Senhora do Socorro na sua capela sobranceira, de cúpula branca, sobre o morro de rochas; Senhora do Desterro, um bocadinho à parte, nuns sítios então desertos e que faziam lameiro; Senhora da Guia já batida das ondas,  que às vezes passavam dum lado a outro isolando-a como uma pequena ilha caiada. (...) Vila do Conde, minha Vila desses paraísos perdidos!, "espraiada entre pinhais, rio e mar... ".

 

Fez o seu curso primário na Escola da Meia Laranja, a que ficava mais próxima da sua casa. Foi seu mestre o professor Adelino Mendes Vieira, sendo aprovado no exame em 19.08.1913 com a classificação de "Distinto".

 

É por este tempo que Régio começa a desenvolver duas "paixões" que o acompanhariam ao longo da vida, conforme suas próprias palavras :

 

"...e principiei bastante novo (aí pelos doze anos) a fazer a minha biblioteca particular"

"...o gosto das coisas antigas (...) ainda gaiato, eu escapulia-me para um caminho subterrâneo que há em Vila do Conde, nas ruínas do claustro do antigo Convento, a procurar "caquinhos" de louça velha".

 

No jornal vilacondense "O Democrático ", de 11.06.1916, publica o soneto "Amor", com o pseudônimo "Vénus", iniciando assim com 15 anos incompletos a sua atividade de escritor. Logo depois muda para "Phebus" mas será em 25.12.1921 que, no semanário também vilacondense "A República" usará pela primeira vez o pseudônimo com que ficará conhecido, "José Régio", subscrevendo uma "Toada do Natal".

 

Entretanto, faz de 1914 a 1918 o Curso Geral do Liceu (1º ao 5º ano) no "Instituto de Vila do Conde", um externato fundado e dirigido pelo Padre José Praça e que funcionou no solar onde hoje está instalada a "Estalagem do Brasão". O Padre José Praça, grande educador vilacondense, foi seu professor de português e o primeiro a intuir as suas qualidades de escritor. É que numa redação sobre "A Primavera", o menino José Maria desprezou os costumados chavões e escreveu sobre as primeiras andorinhas que vira de manhã, ao abrir a janela do quarto, como anúncio da primavera que chegava. O exame de 5º ano foi feito em 1918 e foram seus colegas Joaquim Maria d'Almeida, José Faria de Carvalho, Júlio Maria dos Reis Pereira e Manoel Dias Ferreira.

 

O 6º e o 7º anos foram cursados no Liceu Rodrigues de Freitas, do Porto, tendo então vivido como aluno semi-interno na Escola Académica do Porto, na Quinta do Pinheiro. No exame de conclusão do Curso Liceal obteve 15 valores, em agosto de 1920.

 

Admitido em 08.10.1920 na Secção de Filologia Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, vem a concluir o curso em 1925. A tese de licenciatura, "As Correntes e as Individualidades da Moderna Poesia Portuguesa" foi composta e impressa numa tipografia vilacondense pelo inesquecível Luiz de Oliveira Cura.

 

Seguiu-se o curso de preparação para o magistério liceal na Escola Normal Superior que conclui em 1927. Inicia sua vida profissional em Outubro de 1927 no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto, e no ano letivo de 1929-1930 efetiva-se em Portalegre, no Liceu Mouzinho da Silveira, onde permanecerá  por mais de trinta anos, até  a sua reforma.

 

Em 1928 o saudoso Carlos de Sousa Adriano editou e dirigiu uma revista mensal, "Vila do Conde", de apresentação esmerada, e José Régio colabora logo no primeiro número com um texto de feição vilacondense,  "Nossa Senhora da Vila"; nos números seguintes, novos textos reveladores do vilacondense amoroso, "Carta ao S. João da Igreja ditada pela Amelinha Rendilheira"  e  "Carta de um banhista de todo o ano". Apropriadamente, estes textos subordinam-se todos ao título genérico de "Espuma do nosso Mar".

 

Sendo certo que em Portalegre lecionou por dezenas de anos, reuniu uma coleção de antigüidades e publicou a maior parte da sua obra literária, não é menos verdade que Vila do Conde foi sempre a terra do seu coração, aonde vinha todos os anos pelo menos pela Páscoa, pelo Natal e nas férias escolares.

 

Em 1934 começa em Vila do Conde a redigir "A Velha Casa", uma longa e profunda obra que escreverá até aos seus últimos dias, obra esta ligada à Família e a Vila do Conde.

O ano de 1941 é o ano do "Fado", o livro que publica o imortal "Romance de Vila do Conde", quase um hino da nossa terra materna :

 

Vila do Conde, espraiada

Entre pinhais, rio e mar...

-         Lembra-me Vila do Conde,

Já me ponho a suspirar.

Vento norte, ai vento norte,

Ventinho da beira-mar,

Vento de Vila do Conde,

Que é minha terra natal!,

Nenhum remédio me vale

Se me não vens cá buscar,

Vento norte, ai vento norte,

Que em sonhos sinto assoprar...

 

Vivendo em Portalegre, continua sentimentalmente ligado a Vila do Conde. No Natal de 1941 publica na "Eva" uma novela, inspirada numa figura de Retorta, "Maria do Ahú", novela que depois integraria as "Histórias de Mulheres". Em 1942 faz um prefácio para "Contos Sombrios", de Joaquim Pacheco Neves, e em 1948 escreve o prefácio das "Quadras Soltas", de Ramiro Martins, prefácio que, a meu juízo, é um dos textos mais belos que escreveu, pela compreensão carinhosa, reveladora da sua grandeza humana.

Ainda em 1942 um grupo de vilacondenses que freqüentara o "Instituto de Vila do Conde " homenageou o professor e diretor Padre José Praça e no almoço esteve presente José Régio, colaborando ainda com um poema no número especial da "Renovação" de 8 de agosto. Em 1953 entrega à vilacondense "Edições Ser" a 1ª edição de "Os Avisos do Destino" e a 2ª edição de "Jacob e o Anjo". A colaboração com jornais, boletins culturais, catálogos vilacondenses é constante e textos regianos podem ser encontrados ao longo dos anos cinqüenta e sessenta.

 

Vale a pena deixar aqui uns versos quase íntimos que escreveu no 49º aniversário de sua mãe :

 

Que o filho lhe mal pagava

Queixou-se-me certa mãe.

-         Nem a vida lhes chegava,

Se os filhos pagassem bem !...

Quem tem um filho apartado,

Sofre com dois corações :

Um, tem-no em si bem fechado;

Outro... lá longe aos baldões.

Cria uma mãe seu menino:

Cresceu... seguiu novos trilhos.

-         E é para esse destino

Que as mães dão azas aos filhos !

Minha mãe, se eu te perder,

Farei de branco o meu luto :

Que é Santa toda a mulher

Que dá poetas por fruto !

 

E numa folha solta, encontrada na sua casa, com letra apressada e emendas, estes versos dedicados ao pai, falecido em 24.04.1957, versos depois incluídos em "Colheita da Tarde" :

 

Foste simples, banal,

Bom, com defeitos, jovial,

E tão pegado à vida,

Que ainda, velho, velho, a não podias crer vivida.

Viveste para as coisas deste mundo,

Que seria melhor

Se o pudesses fazer conforme o teu humor.

Não é por ser teu filho que sou triste,

Demoníaco, angélico, diferente,

Descontente, nevrótico, perverso.

Mas se algo, em mim, resiste

De humildemente humano,

Amigo de viver conforme vai

Vivendo a gente consoante o ano...

A ti o devo, pai !

A ti o devo, se nasci.

E a ti o devo, se inda não morri.

 

Para a sua terra natal regressa em definitivo em 23.03.1967, após a reforma e o internamento num Sanatório de Lisboa.

 

Terei de inserir aqui uma nota pessoal, mas indispensável na biografia regiana. É que em 05.10.1965 faleceu no Recife o Antonino Maria, irmão de Régio e meu amigo.

 

Antonino, nascido em 25.01.1905, cedo emigrou para o Brasil, onde levou uma vida discreta, dedicando-se à sua profissão de empregado de escritório e distraindo-se com pescarias e charadismo ("Antomarepe") nas horas vagas. Como Antonino morreu repentinamente com um infarto do miocárdio, precisei intervir não somente com as providências imediatas de funeral como também para acautelar seus poucos bens. Por isso mantive durante anos uma correspondência regular com Régio e com João Maria. Nessa correspondência José Régio revela todo o seu afeto fraternal :

 

"Mais, talvez, do que o exteriorizava ou deixava perceber, sempre pensei muito no Antonino. Pelo seu feitio particularíssimo, ele levou uma vida diferente da que poderia ter levado. Quis ir para o Brasil ainda muito novo, lá ficou, e os nossos pais morreram com o desgosto de nunca mais o terem visto." (carta de 17.10.1965)

 

"As duas casas são para nós uma só. Creio que tenho obras para o resto dos meus dias. Nunca poderei esquecer como, estando aí tão longe, se empenhou o Antonino, insistindo nisso, em que não vendêssemos nenhuma das casas. Decerto não seriam vendidas. E eu sonhei várias vezes que um dia o Antonino as viesse ver, melhoradas por algumas obras mas sem perderem a feição primitiva, e mobiladas com peças da minha colecção de antigüidades." (carta de 08.02.1966)

 

(As referências publicadas por Régio sobre o Antonino estão nas páginas 31 a 33 da "Confissão dum Homem Religioso" e no conto "Uma Anedota de Gaiatos", incluído em "Vestido cor de fogo e outras histórias", da Editorial Verbo).

 

"Saíra ainda bastante deprimido, ou neurastenizado, do Sanatório. E precisava de lutar! Felizmente, ao menos por enquanto, a minha saúde tem sido satisfatória; e o estado de espírito, ou de nervos, também melhorou. Recomecei a trabalhar a sério, (lancei-me ao 6º volume de "A Velha Casa") e a escrever aos amigos com quem estava em dívida. Ainda não sei "quando" irei a Portalegre, e creio que não irei por muito tempo : Agora vou "puxando" mais para Vila do Conde. Numa certa idade, a gente começa regressando às origens". (carta de 12.09.1967)

 

"De saúde vou passando sem novidades de maior. O meu nome anda agora muito nos jornais, escrevo artigos, meto-me em polêmicas... Sou bastante discutido e mesmo atacado por certos sectores; mas também tenho quem me defenda e às vezes me defendo eu próprio. Também vou publicar um novo livro de versos - "Cântico Suspenso" - bastante estranho porque me nasceu dos meses de doença que atravessei... mas que não julgo inferior aos outros. Terei todo o gosto em lho mandar logo que saia". (carta de 17.10.1968)

"(...) Um moderníssimo poeta concretista, experimentalista, etc, acharia de uma insuportável banalidade estas imagens. Mas eu não me importo. Já estou velho; e, se nos traz graves desvantagens, a velhice também tem compensações. Por exemplo: a de contribuir para um despreendimento e uma liberdade de espírito que bem podem ser superiores.

Escrevo isto e lembro-me de que na sua carta me perguntava indirectamente pela "carreira" do "Cântico Suspenso". O livro foi muito discutido. Os tais poetas mais ou menos "istas", que me dão a honra de me escolherem para alvo predilecto das suas contestações (o termo entrou na moda) atiraram-se a ele. Não foi novidade para mim, que sempre tenho tido sectores atacantes. Desde os "Poemas de Deus e do Diabo". Também sempre tenho tido defensores, e até calorosos. Foi o que mais uma vez sucedeu. Haja saúde !, (a possível nestes meus anos) e Deus nos ajude até ao fim a seguir uma carreira independente e, se me é lícito dizê-lo, corajosa. A mocidade de hoje é muito adulada porque se tornou uma força, mas... que lhe hei-de eu fazer ? "Não vou por aí !" Presentemente ando sobretudo metido na "Confissão dum Homem Religioso", - livro que há muitos anos tenho vindo adiando... Chegou a altura, já não devo contar com longos adiamentos. Depois quero terminar "A Velha Casa". (carta de 09.09.1969)

Tão cheio de projetos, e tão perto do fim !
O violento infarto do miocárdio acometeu-o precisamente um mês após esta sua última carta, ao anoitece da Quinta-feira, 9 de Outubro, quando regressava do Porto; depois foi o rápido internamento e a obsessiva determinação de regressar às origens. E foi o, afinal, sereno despreendimento desta vida, ao amanhecer da Segunda-feira, 22 de dezembro de 1969, quando dormitava no quarto da sua casa, velado pela dedicação do José Viana, meu amigo de infância. Naquela casa que fora da Madrinha Libânia e agora era sua.

Ficou repousando no jazigo de família no cemitério de São Francisco, junto dos seus. Em vida buscou incessantemente uma luz divina (só Deus sabe se a encontrou) mas com São Francisco certamente os caminhos não tinham "Encruzilhadas", a julgar pelo belo poema em seu louvor, no livro "Filho do Homem", em que o trata fraternalmente por "nosso irmão e irmão de tudo" :

"Francisco, nosso irmão e irmão de tudo !

Sublime doido, jóia rara

Com a nossa miséria por engaste...

Quem, de ti digno, te cantara !

Mas a mim, dá-me a glória de ser mudo :

Irmão das pedras que pisaste."


Esta é uma visão pessoal (e necessariamente incompleta) de José Régio, vilacondense muito ilustre, de quem fui conterrâneo, amigo, procurador, correspondente e, principalmente, admirador. Do vilacondense que eternizou sua terra natal no "Romance", do homem que sonhou um dia casar na Capela do Socorro, do poeta que por fim pedia que o levassem depressa,

"Depressa ! estou sem vagar,

A tomar ar ! o meu ar

Da minha terra natal.

Vila do Conde, espraiada

Entre pinhais, rio e mar..."




Maceió (Brasil), Setembro de 2001

  José Constantino Ferreira Maia