82º ANIVERSÁRIO DO RANCHO DA PRAÇA
BREVES PALAVRAS SOBRE A EFEMÉRIDE
POR J. CARVALHO BRANCO
Minhas senhoras e meus senhores:
Tal como Régio, o nosso grande poeta cantou:
O fado nasceu um dia
Na amurada de um navio
Também nós podemos cantar:
O Rancho nasceu um dia
Em Noite de São João
Quando jovens na folia
Dançaram dando a mão
Foi fixada uma data, aquela que estamos a comemorar, mas na verdade o Rancho nasceu de um gesto, de um olhar, talvez de um beijo furtivo dado naquela Noite de magia e sonho que é a Noite de São João. Talvez esse beijo repetido em dias seguintes até à Noite de São Pedro, tenha agrupado alguns jovens - rapazes e raparigas, que na continuação, em festas e romarias se agrupou e se desenvolveu formando um grupo, que mais tarde se organizou e se foi transformando pouco a pouco até chegar aos nossos dias com a pujança que o dinamiza.
Sabemos que no início, nos seus primeiros anos de vida, o Rancho da Praça, já agora assim denominado, além das actuações na vila, pouco ou nada tinha a ver com os interesses dos chamados generais e poetas, literatos e a fauna habitual dos conquistadores que começaram então a volitar à volta do agrupamento que, como se sabe, era constituído por jovens, rapazes e raparigas, na sua maioria pertencentes às classes laboriosas.
Como muito bem escreveu o Dr. Manuel Cunha Reis, o Rancho da Praça começou inicialmente por ser constituído por gente da zona ribeirinha, da beira mar; pescadores, rendilheiras e tricanas, gente da chamada classe média. Antero Gomes, componente desde 1931, chama ao Rancho um rancho caseiro. O agrupamento apenas tinha vida nos dias de Festas de São João, Padroeiro da Vila e numa tradição que já vinha do tempo das freiras do Mosteiro de Santa Clara quando elas, junto dos muros que circundavam o convento, entoavam trovas de sabor popular.
Temos, portanto, que o Rancho das Rendilheiras da Praça existe desde 1920 com os anos antecedentes da sua formação que não têm data mas que, como o fado, nasceu um dia em que jovens na folia dançaram dando a mão.
E só assim se compreende a formação de um outro rancho, o do Monte, que formará a bipolarização, motivo constante de guerrilha que, então sim, os generais poetas, literatos e a fauna habitual dos conquistadores de pacotilha, se vai desenvolver e será concerteza a força centrípeta da qual resultará o desenvolvimento quase paralelo de dois Ranchos até aos dias de hoje.
Portanto, o Rancho não nasceu de um dia para o outro nem sequer é produto de qualquer intenção premeditada. Só assim se compreende que seja através das cantigas e das danças populares que o Rancho se vai formando, adquirindo características etnográficas e folclóricas. É aqui que se verifica a influência dos generais, dos poetas e dos intelectuais que volitam à volta do Rancho. Discute-se mesmo sobre se o Rancho será apenas regional ou simplesmente folclórico, esquecendo que o Rancho é apenas uma formação de devoção antiga ao Santo Padroeiro São João, praticada pelo povo que lhe dá confirmação todos os anos, numa romaria colectiva com cantigas, danças e cascatas votivas ao Santo tão venerado, que chegam a raiar o paganismo.
Rancho, nascido e formado, vamos dizer a partir de 1920, com o apoio principal das Casas de Rendilheiras, com destaque principal para a casa Flores Torres onde se considera o quartel general. Além de Júlia Marrafa e de Gracinda, rendilheiras que dinamizam o agrupamento e dominam no meio operário, Duarte Silva e António Silva, Cândido Rodrigues e Francisco Barbosa, Doutores Cunha Araújo e José Ferreira, João Canavarro e Pereira Júnior, são então os marechais e generais que encabeçam os Ranchos da Praça e do Monte que como já disse são produto da mesma gestação
Zizo Almeida define assim as rivalidades entre os dois Ranchos, dando-nos esta saborosa prosa do melhor que era capaz:
"Mas no relevo da tumultuosa história dos Ranchos da Praça e do Monte, os rumores públicos de euforia ou de desânimo, destes acontecimentos ou de outros semelhantes, influíram poderosamente nas ironias e nos contrastes de humor do carácter pessoal afectando, muitas vezes, a compostura social de curiosos tipos, aparentemente tímidos e prudentes, todavia exorbitando as suas sensíveis predilecções no desaforo colérico de absurdas obstinações partidárias."
Melodias, versos, danças, ou seja, música, poética e coreografia, já existentes no Rancho da Praça no ano de 1920, tiveram a sua primeira consagração, embora já existisse há muitos anos. Estava formada a plêiade de compositores, musicólogos e inspirados poetas, maestros e executantes, além de um enorme grupo de rapazes e raparigas prontas a dançar, não só na vila mas também pelo mundo fora, iniciando-se assim as apresentações fora de portas.
Diz o grande pracista Antero Gomes que a primeira grande saída do Rancho se deu no ano de 1933 e foi no mês de Setembro que teve lugar a primeira digressão que durou 5 dias. Visitou e exibiu-se em Coimbra, Estremoz, Lisboa, no Parque Mayer e no Teatro Capitólio, tendo sido aclamado em todos os locais onde se exibiu, tornando-se conhecido e dando a conhecer Vila do Conde, até porque envergava o traje de rendilheira, com as suas características tão regionais.
Lembramo-nos então de Francisco de Barros Barbosa que mandou construir a suas expensas o edifício sede do Rancho das Rendilheiras da Praça, tornando-se com esse gesto no maior benemérito porque, com sede própria, o Rancho, a partir do dia 8 de Dezembro de 1933, passou a ser uma instituição, não sei se a mais importante desta "Vila do Conde esquecida, entre pinhal, rio e mar". E por falar nesta tão conhecida poesia do grande José Régio, vem a propósito lembrar aqui o grande poeta e cronista deste rancho, o meu querido amigo António Lopes Ferreira, que Deus chamou para junto dele, não se lembrando da falta que nos faz.
Eu, que estou aqui, como se costuma dizer, a meter a foice em seara alheia, estou efectivamente em substituição de tantas pessoas que, melhor do que eu, poderiam falar do Rancho. Lembro o Albino dos Santos Ferreira, o Marcelino Cunha, Manuel Flores Aguiar, Guilherme Cândido Martins, o António Lopes de Macedo, o Álvaro Morais. Por que não falar de Adroaldo Azevedo, Manuel da Cunha Reis e de tantas senhoras que sempre foram a coluna dorsal do Rancho, como por exemplo D. Maria Flores Torres e sua filha D. Maria Adelaide, D. Germana Agonia, proprietária da casa "Laurinda", um dos "viveiros" das rendilheiras da Praça e mãe do nosso amigo Carlos Agonia, e das Pouca-Sorte, da D. Sofia e de tantas outras que são ou foram o "elo" que nunca enfraqueceu e dominou sempre quaisquer situações.
Perdoem-se se esqueci algum nome que devesse ter citado, mas nesta fase da vida a memória vai-me já atraiçoando. Um pelo menos, pela sua importância: Carlos Marcelino Saraiva, com o meu abraço amigo.
Vou terminar estas palavras que propus serem apenas duas e já ultrapassam o razoável numa festa tão importante como esta que é a de distinguir todos os Pracistas vivos.
Muito obrigado.
J. Carvalho Branco
