D. Ricardo Nores Castro
Um Vilacondense de eleição

           Tinha eu ainda catorze anos em Maio de 1969 quando ingressei no Rancho da Praça como “solista”, lugar que ainda hoje desempenho com muito gosto na qualidade de componente. Muito embora sempre tenha sido da Praça, numa tradição de família, só comecei no entanto a tomar verdadeiro contacto de algumas situações a partir dessa data. Não podendo precisar objectivamente se foi logo nesse ano ou não, eis que num dos ensaios do rancho, o então Presidente da Direcção – Sr. Albino dos Santos Ferreira, nos avisa de que “no próximo ensaio estará presente o “velho amigo” do Rancho da Praça – D. Ricardo Nores Castro e sua esposa. Ainda hoje lembro com alguma nostalgia o pequeno mas belo salão da sede do Rancho da Praça, que nesse dia foi preparado e enfeitado a rigor com flores para receber aquele casal de ilustres convidados e amigos.

          Os componentes e os músicos estavam trajados a rigor, e mesmo as inúmeras pessoas “doentes da Praça” que habitualmente assistiam aos ensaios, tinham nesse dia uma excitação própria de quem recebe alguém importante. Quando o casal Nores entra na sede acompanhado do nosso saudoso amigo Albino Ferreira, parece que as pessoas tinham uma mola, pois sem nada estar combinado, puseram-se de pé e numa grande aclamação gritaram em uníssono – “Viva D. Ricardo e sua família, Viva o Real Coro Toxos e Froles, Viva El Ferrol del Caudillo”. O ensaio decorreu com grande entusiasmo, como se de uma actuação se tratasse, findo o qual, D Ricardo e D. Maruga confraternizaram com toda a gente. Apesar da rebeldia natural dos catorze anos, este episódio “aguçou” a minha curiosidade, e comecei então a perguntar aos mais velhos a que se devia aquela deferência.

          Tomei então conhecimento que D. Ricardo Nores Castro, juntamente com os Srs. Adroaldo Gonçalves de Azevedo e Albino dos Santos Ferreira eram grandes amigos pessoais desde 1958, e que D. Ricardo e sua família eram dos melhores “pracistas” que o Rancho da Praça tinha fora de Vila do Conde. Além sido, ainda segundo os mais velhos, a amizade do Rancho da Praça com o Real Coro Toxos e Froles, o carinho com que no Ferrol se falava de Vila do Conde, e o “tratamento principesco” quando íamos dançar a Espanha, a D. Ricardo se devia.

          Os anos foram passando e D. Ricardo continuava a deslocar-se a Vila do Conde, com a regularidade que era possível na época, uma terra onde segundo ele “estava como na sua própria casa”. A sua facilidade em criar amizades era própria de um homem de cultura e de um verdadeiro relações públicas. Tive oportunidade de ver muitas vezes que as pessoas que com ele se cruzavam na rua, quer as “importantes” quer o povo anónimo se acercavam dele e o tratavam como se de um amigo íntimo se tratasse. Mais tarde, em 26 de Maio de 1973, depois de um grande trabalho diplomático daquelas três personagens juntamente com as duas instituições – o Rancho da Praça e o Toxos e Froles, milhares de pessoas deslocam-se ao Ferrol para assistir à Geminação das duas cidades. Os irmãos ferrolanos acolhem de braços abertos os irmãos vilacondenses.

          A lembrança dessa tarde, passados que são vinte e cinco anos, continua a ser algo de indescritível e julgamos mesmo impossível de repetir na actualidade. Chegados à Praça de Espanha, no meio de “um mar de gente” à espera da caravana vilacondense lá estavam D. Ricardo, as autoridades civis, militares e religiosas, o Real Coro Toxos e Froles, o Terra Meiga e muitos outros grupos. Pelos altifalantes instalados por toda a cidade só se ouviam as músicas do Rancho da Praça.

          No Polígono de Caranza foi então inaugurada a Rua de Vila do Conde, e em Vila do Conde a Avenida El Ferrol del Caudillo. Os dois povos imbuídos de um só sentimento deliravam de alegria. Afinal o caso não era para menos. O acontecimento era histórico se tivermos em conta as muitas barreiras que foram necessárias ultrapassar, as burocracias governamentais – pois nessa altura os nossos povos estavam de costas voltadas, os problemas alfandegários, as dificuldades financeiras e a falta de vias de comunicação capazes, dado que para nos deslocarmos de Vila do Conde ao Ferrol ou vice-versa, numa distancia que não chega aos 300 Km., era necessário um dia inteiro de viagem.

          Tudo estes homens ultrapassaram sempre com a determinação de quem quer vencer. Disso nem qualquer pessoa é capaz. Apenas as pessoas determinadas, de carácter e desinteressadas o fazem. Por isso, D. Ricardo Nores e os Srs. Adroaldo Azevedo e Albino Ferreira foram homens com H, de todos merecem o devido respeito. Foram pessoas tão importantes no relacionamento das duas cidades que não podem ficar esquecidos. A memória das pessoas não pode ser curta nem egoísta ao ponto de esquecer tudo aquilo que lhes foi possível fazer. O Rancho da Praça e Vila do Conde jamais esquecerão este acto. Para imaginarmos as dificuldades que devem ter sentido é preciso recuar no tempo até ao ano de 1958. Ainda não havia decorrido uma década do fim da II Guerra Mundial. As economias dos países estavam depauperadas. As dificuldades eram muitas, e nos casos concretos de Portugal e Espanha, vivíamos as ditaduras de Salazar e de Franco respectivamente, cuja política era a de “orgulhosamente sós”.

          Apesar de todas as adversidades, porque Vila do Conde e Ferrol são terras de marinheiros, podemos afirmar que estes homens levaram o barco a bom porto. Infelizmente não tive o previlégio de privar directamente com D. Ricardo dada a minha idade na altura, pois apesar dele ser uma pessoa bastante sociável, a sua presença altiva e a sua personalidade, qualidades que o caracterizavam, inspiravam um certo receio. No entanto, habituei-me a respeitar quer o Homem e o seu passado, quer a obra que deixou. Após a sua morte, a cidade de Vila do Conde nomeou-o Cidadão Honorário Vilacondense, e o Rancho da Praça nomeou-o Sócio Honorário (a título póstumo).

          Também não privei com o Sr. Adroaldo, essa figura carismática do Rancho da Praça, uma Alma que colocava “o seu rancho” muitas vezes acima da própria família. Quando entrei para o rancho, já Adroaldo Gonçalves de Azevedo se encontrava enfermo e sem poder sair de casa. Albino Ferreira, o incansável “Albino do Tribunal” como era carinhosamente conhecido em Vila do Conde, dado que era funcionário judicial, quando falava de D. Ricardo referia-se-lhe com um entusiasmo tal a que não podíamos ficar indiferentes. Foram muitas as histórias que lhe ouvi contar das suas idas ao Ferrol a primeira das quais em 1959 (após o relacionamento de amizade no ano anterior), tendo então o rancho dançado no Teatro Jofre perante muitas individualidades, e de como eram recebidos pelas entidades civis, militares e religiosas, pelo Real Coro e pelo povo, muito embora o Rancho da Praça tenha ali ido pela primeira vez em 1935 para participar na Festa do Trabalho.

          Infelizmente hoje já nenhum dos três se encontra entre nós. No entanto os intercâmbios a vários níveis entre as duas cidades continuam fruto da persistência imprimida quer pelo Rancho da Praça, quer pelo Toxos e Froles e muito especialmente por D. Ricardo Nores Castro (Filho), a quem o Rancho da Praça nomeou como seu Embaixador no Ferrol. Estamos precisamente a comemorar o 25º Aniversário da Geminação “Vila do Conde – Ferrol” em Vila do Conde, uma organização do Rancho da Praça. Como não podia deixar de ser, o ponto alto desses actos será a evocação de D. Ricardo. Na sucessão dos Ricardos Nores, o filho tem honrado extraordinariamente a memória de seu pai trabalhando incansavelmente para dinamizar e incrementar os actos inseridos na Geminação das duas cidades. Oxalá que as forças não o abandonem. Os povos de Vila do Conde e do Ferrol agradecem do coração.

                                                                                                         Carlos Marcelino